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Os Três Elementos da Construção de Personagens

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Por onde começar uma história? Com a criatividade a todo vapor, inspirados por outros livros, filmes, séries, quadrinhos e, acima de tudo, pela vida real, aqueles que têm em seu sangue a literatura e a escrita geralmente iniciam seus planos a partir de um rascunho mental de uma história, como se escrevessem uma sinopse nas estrelas de suas almas, cujas constelações, por vezes, indicariam, inclusive, o próprio fim de uma saga criada em instantes. Seria esse o ponto de partida correto para a jornada de tinta e papel a se iniciar?

Responder afirmativamente a essa pergunta não é necessariamente um erro, mas talvez possa se revelar precipitado, pois toda história precisa de personagens, e por melhor que seja seu potencial, se ela tiver protagonistas, coadjuvantes e vilões fracos, superficiais, irreais e caricatos, tudo poderá ir por água abaixo. Assim, como se preenchêssemos aquelas clássicas fichas de jogos de RPG, é preciso criar nossos “filhos” que estarão presentes na saga. Eles deverão ter características próprias, marcantes, uma biografia, conquistas, frustrações, crenças, famílias, origens e outros elementos que contribuiriam para eles serem quem eles são, exatamente como acontece com pessoas reais.

Logo, ao cogitar escrever uma história, é preciso ter em mente quem irá trilhá-la, e esse “quem” é algo invariavelmente complexo, pois assim são as pessoas: complexas. O grande risco ao desenvolvermos personagens de maneira desprovida de critérios é neles replicarmos a nossa personalidade, começando pelos seus valores e passando pelas características físicas e até no jeito de falar. Um dos grandes sinais de amadorismo de uma obra está justamente na sensação do leitor de que há vários clones conversando entre si, levando-o a se perguntar repetidas vezes sobre quem, de fato, está protagonizando determinando momento da obra.

Uma reação igualmente amadora do escritor para evitar essa armadilha é exagerar nos estereótipos. O vilão maléfico, o assassino cruel, o playboy desprovido de sentimentos, a mulher sedutora e promíscua, o crente ingênuo, o herói valente de cabelo no peito e a mocinha santificada. Ainda que a obra tenha vários personagens bem distintos, se suas características não forem de fato únicas, mas meras expressões de clichês, o problema continua.

Certo, mas como se constrói um personagem? Como fugir do risco de replicarmos nós mesmos na obra ou a empilharmos com perfis estereotipados e vazios?

Um personagem será criado a partir de três elementos: seu lugar na obra, seu perfil e a expressão de sua personalidade. O “lugar na obra” é a razão para ele nela existir, sua relevância para a história; o perfil envolve todas as suas características pessoais; e a expressão de sua personalidade é a forma como esse perfil emergirá naquele indivíduo fictício quando ele se manifesta na obra.

Desses três elementos, o mais simples é o primeiro, se pensarmos nos protagonistas, pois ele é intrínseco à criatividade mínima que um autor, em tese, tem ao desenvolver uma história. Ao cogitarmos um típico romance água com açúcar, por exemplo, teremos, ao menos, o casal que o estrelará e já haverá uma ideia de como ele será a partir do tipo de enredo já rabiscado em nossas mentes. Essa premissa, no entanto, não é tão simples para os coadjuvantes, muitos dos quais vão nascendo à medida que a obra se desenvolve, como uma necessidade para suprir algumas situações. Mesmo assim, há os coadjuvantes principais (como a amiga de um dos enamorados, por exemplo) e eles, por serem literalmente importantes, precisam ser planejados, ou seja, o seu lugar naquele tempo e espaço precisa ter sido concebido sem improvisos.

Ok, vencida essa primeira premissa, é preciso partir para a segunda. Ela é muito trabalhosa, mas se levada a sério se revelará um grande atalho. Trata-se da famosa “ficha”, como as já mencionadas para jogos de RPG. Um personagem é um ser vivo dentro de um universo criado pelo autor. É alguém inserido em uma realidade sociocultural, com personalidade, gostos, histórias, atributos e por aí vai. Assim, uma ficha organiza essas características, começando pelo nome completo do indivíduo, data e local de nascimento, preferências, atributos e limitações físicas, medos, traumas, vícios, virtudes etc. Além disso, é muito importante desenvolver a história pessoal do personagem em uma espécie de minibiografia. Todos esses elementos dotarão aquele ser de alma, pois assim são as pessoas na vida real. Quando vemos alguém atravessando a rua na nossa frente, não estamos diante de uma imagem virtual, mas de um ser humano que trilhou toda uma história até se encontrar naquele exato momento diante de nós. Ele é quem é como um resultado de características genotípicas e fenotípicas combinadas em um espaço-tempo e isso não deve ser ignorado.


Uma típica ficha de RPG. Uma adaptação de algo do tipo para personagens de livros é um grande atalho para a sua construção.

Essas fichas de personagens são verdadeiras colas para a sua ambientação e expressão nas histórias, servindo como uma âncora ao escritor, evitando que seus vícios pessoais e sua tendência natural de “possuir” aquele ser fictício prevaleçam.

Muitas vezes, por uma questão de estilo, o autor insere a “ficha” dentro do texto, proseado, como parte do romance. Se por um lado, o início da história, em si, é adiado, havendo sempre o risco de torná-la enfadonha, por outro, o leitor é acostumado com o personagem, conhecendo-o de maneira mais íntima e profunda antes que os principais fatos que envolvem a obra efetivamente venham à tona. É o que Stephen King faz com frequência, por exemplo, como vemos em “A Coisa” (“It”) e na saga “A Torre Negra”. Dostoievski, em “Os Demônios”, também faz isso, enriquecendo sua produção, mas empurrando, muitas páginas à frente, o esperado andar da carruagem. No Brasil, Jorge Amado sempre se destacou nesse ponto, e aquele que já leu “Mar Morto”, “Capitães de Areia” e “Gabriela Cravo e Canela” sabe bem disso.

Seja na forma de ficha ou em “prosa”, o importante é o escritor materializar concretamente essas características e atentar para elas durante a obra. A questão é: como?

Eis, então, o terceiro elemento da criação de um personagem: sua personalidade, ou seja, a maneira como ele expressará suas características históricas, físicas e psicológicas perante os demais. Aqui reside o grande pulo do gato do escritor, aquele momento em que será possível saber se ele é um homem ou menino, se é alguém amador ou profissional.

O que nos faz pensar se um ator é bom ou ruim? A resposta é simples: sendo ele convincente. Um ator como Leonardo DiCaprio, por exemplo, que já fez diversos papeis totalmente diferentes uns dos outros, e com maestria, é indiscutivelmente notável, enquanto um Adam Sandler é um canastrão porque sempre interpreta ele mesmo, dando a sorte de que, às vezes, “ele mesmo” cai bem para determinados enredos, enquanto em outros, não.

Assim, ao trazer à tona as características de um personagem, o escritor deve interpretá-lo como se fosse um ator. Ele precisa se despir dele mesmo, esquecer seus valores, sua história, até mesmo sua voz e seu cheiro. Deverá se tornar um completo vazio para, então, permitir que a “alma” (no caso, a “ficha”) do personagem por ele criado entre em seu corpo e o conduza no momento da escrita. Enfim, ele deverá escrever como se estivesse atuando e seu objetivo não deve se limitar a meramente mostrar pessoas diferentes na obra, mas convencer o leitor de que elas são reais.

Como dito, pensar sobre a importância de um personagem para obra é relativamente fácil, e a criação de sua “ficha”, embora, se levada a sério, trabalhosa, igualmente não se revela como algo difícil, pois tudo, ali, reside no campo da teoria. Todavia, desenvolver essa personalidade a partir de sua expressão no “mundo real” da obra é o grande desafio, tanto técnico quanto criativo, passando, obviamente, por barreiras psicológicas que um escritor precisa superar, sempre havendo o risco, ainda, do tropeço nos clichês e estereótipos, algo que apenas será superado com prática de escrita e leitura, além de coragem e desprendimento.

Enfim, ao pensar em criar uma história, lembre-se de que ela apenas será minimamente boa se contar com bons personagens e, para eles existirem, um caminho interessante é justamente seguir esses três elementos de sua construção: seu lugar na obra, seu perfil e a expressão de sua personalidade.

Por Renan E. M. Guimarães

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