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Os Dois Lados da Leitura Sensível

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| Última alteração: 14/02/2022 |

Imagem: https://blog.unicep.edu.br/quais-sao-os-beneficios-da-leitura/

Um escritor, embora possa ser uma Entidade Onipotente, Onisciente e Onipresente em sua obra, não é, verdadeiramente, Deus. Ou seja, ele pode dizer que está em um lugar no livro, mas não quer dizer que já esteve lá; ele pode descrever com precisão um fato, o que não significa que já o tenha executado, tampouco o presenciado; e ele pode apresentar alguém com determinadas características que diferem completamente das suas. Esse alguém poderá ser de um sexo, gênero, etnia, nacionalidade, cultura e religião absolutamente diferentes da sua realidade. Assim, dependendo do objetivo da obra, poderá estar presente o risco de seus personagens se apresentarem de forma caricata, estereotipada ou superficial.

A fim de evitar esse tipo de tropeço, existe um tipo de revisão chamada de LEITURA SENSÍVEL. Geralmente destinada a suprir lacunas em obras que tratam sobre temas sensíveis, entendidos estes como aqueles que envolvem minorias, nela o autor submete seus escritos a um leitor pertencente a tal minoria, que avaliará se os personagens estão adequadamente caracterizados, tanto no que concerne ao seu perfil quanto no que toca à maneira como ele se relaciona na história.

Assim, um autor branco, ao escrever uma ficção sobre racismo, a submeteria a um indivíduo etnicamente negro para que este realizasse apontamentos pertinentes a partir de seu lugar de fala, a começar pelos próprios personagens negros. O mesmo vale para o heterossexual que descreve um homossexual, e por aí vai.

O grande objetivo da leitura sensível, portanto, é dotar os personagens e a própria história do realismo visado pelo autor e fugir da armadilha de visões preconceituosas ou inverossímeis. Além disso, tentará acolher ao máximo o público leitor pertencente aos grupos presentes na obra. Trata-se, assim, de uma espécie de revisão empática que tenta garantir que a representatividade e inclusão buscadas pelo escritor não se revelem, para ele e seu público, a promoção de ideias discriminatórias.

Por outro lado, não existe qualquer exigência para que uma obra, ainda que trate sobre temas sensíveis, seja submetida a esse tipo de revisão, não sendo justo presumir que um autor, por ser homem, branco, heterossexual e de classe média, não seja capaz de, por suas observações, descrever, com precisão, uma mulher negra, homossexual e pobre, por exemplo. Entender o contrário seria de uma imbecilidade tamanha que levaria um Machado de Assis a jamais escrever livremente sobre um Simão Bacamarte, afinal, ele não era nem cientista nem louco, por exemplo.

Além disso, a criatividade é o elemento primordial em qualquer produção literária, devendo haver margem para supostas imprecisões que possam, inclusive, incorrer no risco de eventual ofensa daqueles que não se identificarem com personagens e situações. Depois, e talvez essa seja uma das maiores críticas a esse tipo de revisão, aqueles que a fazem tendem a promover, conscientemente ou não, uma uniformização de comportamentos e caracterizações que acabam resultando na construção, por eles próprios, de um estereótipo, anulando na ficção aspectos singulares e individuais que existem na vida real. Ou seja, sob a justificativa de promover maior empatia, representatividade e inclusão, acaba-se, a partir de uma premissa coletivista, promovendo-se exclusão e restringindo-se a criatividade artística.

Isso significa que a leitura sensível se revela equivocada? Evidente que não. Dependendo dos objetivos do autor em sua obra e da ideia que ele pretenda transmitir, ela é não só pertinente como necessária. Além disso, o escritor, em um exercício de humildade, poderá não se mostrar tecnicamente confiante com a maneira como apresenta seus personagens ou com o próprio objetivo da história, tendo uma preocupação legítima com os sentimentos de uma minoria, exatamente sob o ponto de vista consagrado coletivamente, de maneira que esse serviço se revela essencial para o resultado final procurado.

Se Machado de Assis não precisou ser ou consultar um “alienista” para criar Simão Bacamarte, José de Alencar deveria ter conversado com um verdadeiro gaúcho para escrever “O Gaúcho”, por exemplo, considerado o pior romance do celebrado escritor do século XIX. Por melhor que fosse, o autor dos icônicos “O Guarani”, “Iracema” e “A Moreninha” tropeçou feio ao escrever sobre um perfil de pessoas, elementos regionais e aspectos geográficos sem que tivesse qualquer conhecimento a respeito que não fosse sua imaginação. Errou a mão, e seu resultado nem foi a ofensa de minorias, mas um livro consagrado como fraco, o que talvez não acontecesse se ele tivesse sido previamente submetido a um “leitor sensível”.

José de Alencar e Machado de Assis
(Imagem: https://apd.org.br/ilicitude-da-redacao-simplificada-de-obras-literarias/)

Enfim, a leitura sensível é um recurso interessante à disposição dos autores e tem a sua pertinência, especialmente para o preenchimento de lacunas técnicas na história e nos seus personagens e para a sua adequação a um tipo de público. No entanto, é igualmente importante que ela não se revele como um limitador da sua criatividade ou como um instrumento coletivista de supressão de individualidades que, em uma obra realista, fictícia ou não, também devem estar presentes.

Empatia é fundamental, mas, ao buscá-la, sempre há o risco de o autor ser utilizado como propaganda de uma ideia que não necessariamente é aquela que se busca, tampouco representa a totalidade de um público, afinal, os que falam em nome do leitor não são o próprio indivíduo leitor. Sempre será impossível agradar a todos e sempre haverá quem não se sinta representado ou adequadamente descrito. Diante disso, vale a pena moldar a criatividade? Como dito antes, depende da confiança do autor em sua história e personagens e do seu sincero objetivo com a obra.

E você? O que pensa sobre leitura sensível? Um interessante recurso técnico para escritores, uma necessária ferramenta de respeito a minorias ou mais um instrumento, direto ou indireto, do politicamente correto que buscaria apenas a promoção de uma visão de mundo e não necessariamente empatia com o leitor real?

Por Renan E. M. Guimarães

@cronicapop @cronicasdofilhoedamae

https://www.channelnewsasia.com/commentary/read-more-books-tips-english-literature-pandemic-lockdown-time-344696

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