| Última alteração: 04/12/2021 |
IMPORTANTE para sua diversão: esta história começa em um post no Instagram da Fraternidade com o mesmo nome, “O Dom de Landell”, e você vai curtir muito mais a trama começando por aquele post, então, por favor, comece por lá.
O primeiro artefato zumbiu e estalos vieram de seu interior. Aproximando-se de um bocal captor de sons, o sacerdote Landell pronunciou algumas palavras:
— Que toda a glória de Deus recaia sobre a grande nação de Vera Cruz Brasil.
Novamente o ar foi tomado pelos tímidos estalos que emanavam do primeiro artefato. Afora isso, nenhum retorno, além do silêncio. O povo, que cercava Landell na Avenida Paulina no coração da Capital Arcana de Santo Paulo, por sua vez o âmago da nação, estava inquieto, mas agora silencioso, nada se ouvia além de um murmúrio desaprovador aqui e ali. Abutres, quietos e atentos.
— Padre Landell… — murmurou o observador da Rainha Eleita, que esteve todo tempo ao lado do sacerdote — houve algum problema?
— Não! — respondeu prontamente o inventor do novo Dom — eu talvez precise…
E o sacerdote remexeu os fios e bobinas de seu primeiro artefato, estava mesmo a ponto de desconectar um dos fios, para reconectá-lo novamente, quando do aparelho veio, quase tão límpida como se ouvida de perto, a voz da senhora que tantas e tantas vezes discursou para o povo ali mesmo, na Avenida Paulina, ela dizia:
— Que interessante, eu pude ouvir, mesmo estando ele tão longe… — ela parecia falar com alguém lá, ao lado dela — fiquei, por um momento, sem palavras, caro cônsul. O sacerdote pode me ouvir também?
Com largo sorriso na face suada, Landell retomou o captor de sons de seu artefato e foi dizendo:
— Vossa majestade me ouviu! Sim! Sim, eu a ouço, claramente! Que maravilhoso!
— Também o ouço claramente, padre. Realmente muito curioso, seu novo Dom.
Enquanto corria essa conversa, o observador da Rainha Eleita, ele próprio um clérigo de posição um pouco mais alta que Landell, erguia uma de suas mãos de sob sua túnica, também negra, mas ornada de medalhão dourado sobre o peito. Sua mão levou um pequeno frasco aos próprios lábios, que após beberem o líquido âmbar, começaram a murmurar algo. Alheio a isso, o padre inventor respondia à Rainha:
— Curioso, senhora? Muito mais! Lhe prometo que com um mínimo de recursos do governo posso equipar nossos navios e dirigíveis com esses artefatos prontos para transmitir e receber todo tipo de conversação! Todo tipo de informação! Em verdade acredito que em breve poderemos transmitir e receber imagens. Imagine, imagine! Documentos, até livros inteiros, sendo remetidos aos quatro cantos, com a velocidade da magia e do éter. Será o fim do tosco véu da ignorância em todo o mundo, graças a Deus e a senhora, majestade! Talvez um dia esse novo Dom nos permita até falar com outros planetas.
— Vossa Rainha, caro padre… — era outra voz que emergia agora do artefato em frente a Landell, uma voz com sotaque estrangeiro — está ciente das possibilidades de seu novo Dom.
— Sim, veremos o que é possível ser feito. — novamente a voz da Rainha Eleita de Vera Cruz Brasil — O cônsul esteve presente justamente para nos assessorar nisso. Obrigada, padre.
Atônito com a receptividade branda de seu invento, Landell persignou-se com o sinal de conexão com Deus, e suspirou. Foi quando percebeu o silêncio persistente ao seu redor, não devia ser assim, as pessoas do povo deveriam ter reagido à voz da Rainha pelo menos. Ergueu a cabeça, com a qualidade do orgulho que sua batina lhe permitia ter, sendo ele tão somente ferramenta de Deus. Olhou o entorno. As pessoas dispersavam, como se nada tivesse ocorrido.
O observador da Rainha, Landell finalmente percebeu, estava rígido ao seu lado, murmurando algo com olhos vazios de vida. Estava recitando feitiço, entoando algum Dom. O sacerdote inventor aproximou o ouvido da boca do observador, e escutou que ele repetia, com um sotaque muito semelhante ao do cônsul, a seguinte frase:
— Oblivion, oblivion, esquece nação do seu poder, esquece da sua capacidade e força, esquece de acreditar em si, oblivion, oblivion, esquece nação…
Dando passos vacilantes atrás, padre Landell tinha o semblante assustado. Sabia quem era Oblivion, o antideus, o Inimigo… aquele homem, que se passava por um clérigo, era um bruxo, a serviço de alguém que enviava um suicida para dar a própria vida, para, naquele instante, impetrar um feitiço poderoso.
Landell juntou suas peças, anotações, tomou seu artefato e atabalhoadamente foi-se embora, caminhando entre seus compatriotas que o olhavam como se nunca o tivessem visto, como se nada demais tivesse ocorrido na Avenida Paulina naquele dia.
Disparado, o sacerdote chegou em pouco mais de meia hora à paróquia onde servia, o templo era dedicado a acrescentar iluminuras, armazenar e catalogar os Dons utilizados em Vera Cruz Brasil, na sua maioria de autoria de outros países, aos quais a terra de Landell deveria tributos toda vez que fossem usados os Dons da criação deles.
Havia um pequeno quarto, anexo ao igualmente pequeno laboratório, onde o sacerdote brasileiro fez imensas descobertas e as pôs em prática. Landell passou pelo quarto, arremessou sua carga com fúria em um canto do laboratório, e voltou, com intenção de arremessar a si também na pequena cama. Mas agora ela estava ocupada, havia um homem idoso de barbas fartas, olhos muito vivos, e vestimenta simples, porém, elegante. Ao vê-lo o padre, queixo caído, balbuciou:
— V-vossa Majestade, o Rei Eleito Pedro II?
— Que espanto é este, padre? Já nos vimos antes no Paço Imperial.
— E-eu… hoje está sendo um dia difícil, Majestade… O senhor aqui.
— Perdoe a indelicadeza de me sentar em sua cama, padre, estou velho, e a outra única opção era a escrivaninha em seu laboratório, mas ela está tomada de artefatos.
— Um ambiente muito humilde, Majestade…
Com um gesto de sua mão, Pedro dispensou a cerimônia no que Landell dizia, e falou:
— Sei o que passou hoje, padre.
— Sabe, senhor?…
Com dignidade, Pedro se pôs de pé.
— Estou aqui para vê-lo por isso. Haverá imensa injustiça, e quero, ao menos, abrandá-la em seu coração, caro amigo.
— O… Inimigo foi mencionado, Majestade, num feitiço… melhor o senhor ir embora, o que quer que venha Deus designa para mim.
— Padre, eu valorizo tanto o conhecimento quando o senhor, venho nessa luta há mais tempo. O oblivion, o esquecimento, o desânimo, a falta de fé de nossa gente brasileira em si mesma… sim, há um inimigo terrível, até inimigos estrangeiros existem, mas nosso maior inimigo somos nós.
Silêncio.
— São tantas razões. Colonização, políticos vendidos, estratagemas gringos, a falta de um espírito unificado… — prosseguiu Pedro II, sem desviar seu olhar profundo — Mas assim como para a ser humano o item mais dispensável costuma ser o outro ser humano, para os filhos da linda terra de Vera Cruz Brasil o item mais dispensável é o próprio brasileiro e o que este faz.
— Se o senhor está sabendo, me diga, Majestade, o que houve lá?
— O Capital, Landell, não a ferramenta útil, econômica, mas a versão corrompida dela, em que se é o que se tem e onde vale tudo para ter. Seu novo Dom vai mudar o mundo, Landell. Absolutamente tudo que disse será realidade, pode apostar. Haverá uma rede mundial de troca de dados. Um planeta conectado, talvez, quem sabe, a outros mundos, mesmo que sejam a daguerreótipos remotos, que nos enviem imagens de Vênus, de Marte, por meio do Dom de Landell.
— Vossa Majestade… não tenho essa soberba, prefiro chamar o novo Dom de Gouradphone…
— Não importa muito o nome, amigo Landell. Importa que essa incrível invenção não lhe será creditada. Houve empresários estrangeiros honestos, que desejaram pedir ao nosso governo para licenciar corretamente sua invenção, mas ganhou aquele que agiu sem escrúpulos, como, infelizmente, ainda é comum em nosso mundo.
Recostando-se em uma parede, o sacerdote pareceu ligar alguns pontos, no olhar aflito e de quem caiu em si.
— A população esqueceu o experimento…
— Ele nunca foi feito, então, Landell…
— A patente nunca será de Vera Cruz Brasil.
— Nunca.
— Será de Tesla? Marconi?
Novamente o gesto de mão do Imperador, dispensando cerimônias.
— Qualquer um. Vai estar nas mãos de quem quer, antes de formar pessoas, formar mercados. Há poderosos neste mundo para os quais descobrir e explorar não são naturezas humanas, mas apenas meios para amealhar posses, poderes, que eles não levarão ao túmulo.
— O que farão com o novo Dom, Majestade?
— Posso imaginar, padre. Homogeneizar mercados consumidores. Captar a atenção de milhões com coisas estúpidas, fáceis de reproduzir e que capturam o espírito humano despreparado… montanhas de folhetins de fofocas que serão entremeados de anúncios de xaropes mágicos ou artefatos inúteis para o populacho ostentar coisas que são sistematicamente impedidos de ser de verdade. Mercados de bilhões, construídos com seu novo Dom por quem não se interessa minimamente no planeta ou pela humanidade.
— Deus…
— Nascemos num tempo que não é nosso, Landell, de quem ama o saber. Acredito que nada podemos fazer.
Lá fora a noite assomava, cobrindo a cidade como obscurecia o futuro do Dom desenvolvido e criado por Landell muito antes de qualquer outra mente sábia. O padre já havia escorregado pela parede em que se apoiara e estava sentado no chão, em frente ao Imperador Eleito Padro II de Vera Cruz Brasil. O padre tinha a cabeça entre suas mãos, os olhos baixos, fixos no chão.
— Mas… — disse o Rei Eleito — aprendi com as décadas, que geralmente, como todo filho de nossa terra, acredito menos do que deveria em tudo que envolve nossa gente e nossa pátria.
Landell ergueu os olhos.
— O amigo já ouviu falar dos Dragões da Independência, por certo. — disse o Imperador Pedro II — mas há um outro grupo, além do Primeiro Regimento de Cavalaria de Guardas do nosso exército, a usar esta alcunha. Há também um seleto grupo de intelectuais com este nome…
O Rei Eleito deu dois passos à frente, e ofereceu a mão ao padre no chão.
— Não vamos impedir que o futuro seja de consumidores treinados diuturnamente pelas elites em consumidores sofrendo de ignorância de contexto, Landell, mas podemos tentar de verdade equilibrar um pouco a balança entre a ignorância e a sabedoria.
O sacerdote inventor deu a mão a Pedro II e ficou de pé.
— Em verdade, padre, o senhor já está lá, pois a frase que abre o Livro de Registro dos Dragões da Independência do Mundo é sua, que parafraseio, “dai-me um movimento vibratório tão extenso quanto a distância que nos separa desses outros mundos que rolam sobre nossa cabeça, ou sob nossos pés, e eu farei chegar minha voz até lá”.
Padre Landell jamais foi reconhecido pela criação do que foi chamado, depois, por Marconi, de o Dom do Rádio, mas nas sombras e como um dos Dragões da Independência do Mundo, impediu, diversas vezes, que o planeta fosse tragado pelas trevas da ignorância!
Fim, com Esperança.
Mas o que tem a ver esse Landell comigo?
Responde de pronto: quem inventou o rádio?
A maioria de nós responde a esta pergunta com o nome do físico e inventor italiano Guglielmo Marconi.
Mas dois anos antes de Marconi (que, a propósito, só conseguiu transmitir sinais telegráficos) em 1894, o padre brasileiro Roberto Landell de Moura fez um experimento de radiodifusão onde transmitiu voz humana por oito quilômetros em linha reta, da avenida Paulista até o Alto de Santana, na zona norte da cidade de São Paulo.
Landell existiu.
Rádio é a base tecnológica da sua TV, dos aparelhos AM/FM, do modo como seu smartphone se conecta às antenas de celular e dali à Internet. A própria Internet, em especial sua versão sem fio, faz uso das tecnologias derivadas do rádio.
E foi um brasileiro que inventou o rádio.
Mas como, então, Landell não é creditado por isso? Ele, curiosamente, não registrava cuidadosamente e com testemunhas todos os seus testes, entregando parte de seu legado, como fantasiamos no conto acima, ao oblivion. Mas, principalmente, ele foi desdenhado como maluco e não teve o menor apoio quando buscou no governo de seu país (ele não queria ceder seus inventos a outros países) o suporte necessário para testar e desenvolver suas criações, que não se restringiram a radiodifusão, Landell desenvolveu em paralelo a transmissão de imagens à distância, isso o fez pioneiro também da televisão, do teletipo e do controle remoto.
Desiludido com o apoio do governo e do povo (há registros de que seu laboratório foi invadido e destruído por religiosos radicais que o acusavam de bruxaria) ao seu trabalho, Landell, preferiu dedicar o resto de sua vida ao serviço religioso apenas, e não mais também à ciência, sendo até hoje apenas parcialmente reconhecido por seus incríveis feitos tecnológicos.
O “oblivion” (metaforicamente falando de algo que realmente acontece) fez o Brasil não perceber o quão importantes eram os conhecimentos de Landell, e perder IMENSAMENTE com essa falta de percepção.
E você? Percebeu a conexão?
Quão dentro de você se implanta o “oblivion” que desvalorizou e exilou para a falta de merecido reconhecimento muitas grandes pessoas com o vulto dos feitos do padre Landell, em essência por serem elas gente do Brasil?
O “oblivion” te faz ardentemente desejar ler somente tramas literárias protagonizadas por personagens forasteiros e/ou em solo estrangeiro?
O “oblivion” te faz crer que quadrinho bom é somente o quadrinho gringo?
O “oblivion” te faz crer que filme e séries boas são somente as que vêm de fora?
O “oblivion” te faz não fazer ideia de que existem cientistas/artistas/ativistas, de grande vulto para a história humana, que são tão brasileiros quanto você?
Está mais do que na hora de você agir contra o “oblivion” que te aprisiona, nós acreditamos. Brasileiro não deve ser somente coadjuvante, tem que ser protagonista muitas vezes também, pois na realidade nós já estamos protagonizando grandes histórias.
Abraços,
Wagner RMS & Bianca Matos.
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Algumas fontes (recomendamos a leitura):